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quarta-feira, 24 de junho de 2009

Livro aberto


"Eu ralava os joelhos em correrias de patins. Sempre, durante toda a infância, meus joelhos viviam cheios de iodo... e eu berrava.

Depois do iodo, mamãe contava uma história. As histórias eram em alemão, meus pais eram austríacos, mas eu nasci no Rio, no antigo Hospital dos Estrangeiros.

Lembro de Grimm e Andersen, livros grossos, cheios de patinhos feios, soldadinhos de chumbo, madrastas, princesas, fadas.

E quando mudamos para a Epitácio Pessoa, de frente para a Lagoa Rodrigo de Freitas, ganhei um livro de Monteiro Lobato! Que maravilha maravilhantemente maravilhosa!

Era o meu primeiro livro com história em português... e minha casa tinha um quintal comprido, como eram os quintais de antes... e ali brinquei de ser Emília.

No quintal, as três mangueiras: manga-espada, manga-rosa e a manga-carlotinha.

Eu brincava com as mangas caídas no chão. A manga carlotinha tinha um jeito de Emília. A manga-rosa, imponente, era Dona Benta. Tia Nastácia não era manga, porque era preta e tinha de ser jabuticaba. Como nosso quintal não tinha jabuticaba, Tia Nastácia era a noite, quando anoitecia sobre o quintal, mamãe chamando para o banho, antes do jantar. A manga-espada era a minha mãe, cortando o meu brinquedo: espada, faca. Eu odiava ter que tomar banho e vestir um vestido formal para o jantar! Naquele tempo, as crianças pareciam que estavam endomingadas, só para jantar. E minha avó, Clara, usava vestidos de crepe negro, imponentes.

Eu tinha de aprender a usar os talheres, a não colocar os cotovelos sobre a mesa, a mastigar de boca fechada e só falar quando um adulto me perguntasse alguma coisa. Por isso, eu detestava comer e era magra que nem o Visconde de Sabugosa!

Mas no meu Sítio de Picapau Amarelo, no fundo do quintal, eu me lambuzava de mangas, comia até uma tal de cajá-manga, fruta ácida, com um caroço espinhento.

Havia um detalhe: as mangas-personagens, essas eu não comia, eram minhas amigas. Quando ficavam murchas, eu as enterrava e colocava florzinhas sobre seus túmulos.

Vovó Clara cantava e dava aulas de canto. Papai tinha um carro movido a gasogênio, que era um horror, uma espécie de botijão de gás preso na traseira do carro, a coisa enguiçava, encrencava qualquer passeio.

Era época da Segunda Guerra Mundial. Havia black-out, tudo tinha de ficar escuro, à noite; o pessoal tinha medo de bombardeios nazistas. Nossa casa foi enfeitada com cortinas negras, para que nenhuma luz denunciasse nossa moradia. Aí, Tia Nastácia virou cortina, na minha imaginação. A casa linda, toda embandeirada de negras Nastácias!

Monteiro Lobato criançou a minha infância e foi minha primeira paixão literária!"

(Livro Aberto - confissões de uma inventadeira de palco e escrita, de Sylvia Orthof)

Um comentário:

  1. quando pequena a recordação que tenho é a dos livros que minha mãe pegava na biblioteca pública e dava pra gente ler, lembro do Monteiro Lobato ( sempre ele!). Ela deixava a gente ler e depois perguntava o que tínhamos entendido. Na verdade eu não gostava muito do Lobato. Preferia as histórias de princesas que ela contava a noite, lia mesmo era pra agradar! Era para mim e meu primo, eu gostava mais que ele, até hoje dá pra ver essa diferença! Teve um que foi ótimo!!! minha mãe pegou Dom Casmurro, mas eu detestei, só li as primeiras páginas, só que não sei porque ele ficou na minha cabeça. Entao queando eu estava na 8 série peguei de novo, e amei!!! eu contava para minhas amigas e a gente comentava como se fosse uma novela das 8!isso nao fez com que elas lessem também, pena! perderam!

    Isabel Cristina
    Pedagogia/FaE/UFMG

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