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quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Miguilim


"[Miguilim]Tinha nascido ainda mais longe, também em buraco de mato, lugar chamado Pau-Roxo, na beira do Saririnhém. De lá, separadamente, se recordava de sumidas coisas, lembranças que ainda hoje o assustavam. Estava numa beira de cerca, dum quintal, de onde um menino-grande lhe fazia caretas. Naquele quintal estava um peru, que gruziava brabo e abria roda, se passeando, pufo-pufo – o peru era a coisa mais vistosa do mundo, importante de repente, como uma estória – e o meninão grande dizia: — “ É meu!...” E: — “É meu...” – Miguilim repetia, só para agradar ao menino-grande. E aí o menino-grande levantava com as duas mãos uma pedra, fazia uma careta pior: “Aãã!...” Depois, era só uma confusão, ele carregado, a mãe chorando: “—Acabaram com o meu filho!...” – e Miguilim não podia enxergar, uma coisa quente e peguenta escorria-lhe pela testa, tapando os olhos. Mas a lembrança se misturava com outra, de uma vez em que ele estava nu, dentro da bacia, e seu pai, sua mãe, Vovó Izidra e Vó Benvinda em volta; o pai mandava: — “Traz o trem...” Traziam o tatu, que guinchava, e com a faca matavam o tatu, para o sangue escorrer por cima do corpo dele para dentro da bacia. — “Foi de verdade, Mamãe?” – ele indagara, muito tempo depois; e a mãe confirmava: dizia que ele tinha estado muito fraco, saído de doença, e que o banho do sangue vivo do tatu fora para ele poder vingar. Do Pau-Roxo conservava outras recordações, tão fugidas, tão afastadas, que até formavam sonho. Umas moças, cheirosas, limpas, os claros sorrisos bonitos, pegavam nele, o levavam para a beira duma mesa, ajudavam-no a provar, de uma xícara grande, goles de um de-beber quente, que cheirava à claridade. Depois, na alegria num jardim, deixavam-no engatinhar no chão, meio àquele fresco das folhas, ele apreciava o cheiro da terra, das folhas, mas o mais lindo era o das frutinhas vermelhas escondidas por entre as folhas – cheiro pingado, respingado, risonho, cheiro de alegriazinha." (p.16-17) retirado de: ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguilim. 9ª ed., 19ª reimpressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

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